Contam que, certo dia, o governador das Minas convocou o grande mestre para encomendar-lhe uma estátua e combinar detalhes: tamanho, características, preço, prazo de entrega.
Aleijadinho se dirigiu ao Palácio acompanhado de seu escravo Maurício e foi recebido pelo chefe de gabinete do governador, Antônio Romão. Esse tinha um ar irônico e olhou fixamente para o Aleijadinho. Correu o olhar de cima abaixo. Ninguém gosta de ser olhado dessa maneira, menos ainda o Aleijadinho. Todos sabem que ele não tinha uma aparência lá muito agradável devido às deformações físicas causadas por uma doença até hoje não identificada. Pessoa assim, não gosta de ser reparada, muito menos com olhos tão ferinos! Além disso, o tratamento dispensado ao artista foi um tanto quanto frio. Tudo isso deixou Aleijadinho magoado, com um brilho estranho nos olhos.
Quando foi recebido pelo governador, eles fizeram os acertos sobre uma estátua de São Jorge, articulada em tamanho um pouco maior que o natural, além de outros detalhes.
Passando novamente pelo chefe de gabinete, Aleijadinho o olhou fixamente no rosto como se quisesse registrar em sua mente, cada ruga, cada detalhe.
Nos próximos dias, trabalhou sem cessar em sua oficina para entregar a encomenda no prazo combinado. A imagem era articulada e deveria sair montada a cavalo na procissão de Corpus Christi que se aproximava. Trabalhou com afinco, moldou-lhe o rosto com capricho, atento a cada detalhe e, finalmente, deu por encerrado seu trabalho.
A imagem foi entregue no prazo combinado e lá estavam novamente o Aleijadinho, seu escravo e companheiro Maurício, o governador, o chefe de gabinete, além de outras pessoas do palácio, chamadas para ver o trabalho do grande mestre.
A imagem estava coberta por um pano e o governador ordenou que a descobrissem. Nesse momento, um grito de susto saiu de todas as bocas, seguido de risos nervosos. É que a imagem reproduzia, nos mínimos detalhes, meio caricaturalmente, o rosto do chefe de gabinete, Antônio Romão.
Essa foi a resposta do grande artista aos olhares insultuosos do chefe de gabinete que não teve mais sossego pois, quando saia às ruas, era sempre objeto de chacota de quantos haviam visto a estátua. Fizeram até um verso que dizia:
“Aquele que ali vai, com cara de santarrão,
não é santo coisa nenhuma, é Antonio Romão!”
Mas a história não termina aqui.
Chegou o grande dia em que a estátua de São Jorge sairia na procissão de Corpus Christi. Essa festa era bastante concorrida. As ruas eram enfeitadas com tapetes feitos de pó de serra, pó de café, casca de arroz e flores, formando belos desenhos. As janelas das casas eram enfeitadas com toalhas coloridas e jarras com flores. As matracas iam à frente abrindo caminho e organizando o cortejo. Na frente, ia o pároco com o Santíssimo debaixo de um pálio, precedido por coroinhas com turíbulos de onde o incenso perfumava toda a rua. A seguir cada irmandade se apresentava com seu estandarte e sua opa, depois vinham figuras bíblicas, anjos, bandas de música. Os fiéis iam no passeio segurando velas acesas e terços. Era uma festa de encher os olhos, os ouvidos e o olfato.
A nova estátua de São Jorge ia sair em público pela primeira vez. Ajeitada sobre um cavalo selado e conduzido por um escravo em traje de cetim, lá se foi o São Jorge, com sua espada em riste. Era a grande atração do cortejo.
De repente, a procissão parou. O cavalo que conduzia São Jorge assustou-se e deu uma parada súbita lançando a imagem para frente com toda força. Numa tragédia sem igual, a lança de São Jorge atravessou o corpo do escravo que o conduzia, matando-o na hora. Pânico, correria, choro tomaram conta da multidão. Gritos histéricos se ouviam, anjos corriam por toda a parte, ninguém sabia o que fazer. Chegou um momento que caíram em si. Um homem estava morto, caído no chão se esvaindo em sangue. Quem o havia matado? Quem era o assassino? São Jorge. Sua lança estava lá, fincada no peito do homem, não havia dúvida nenhuma. São Jorge era o culpado. Para onde vão os assassinos? Pois bem! A imagem de São Jorge foi levada para a prisão e lá ficou por muito tempo. Isto é real, tem até documento comprovando este fato.
Quem visitar hoje a Casa de Câmara e Cadeia há de ver que ainda está lá a imagem de São Jorge, atrás das grades.
(Texto extraído do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier)